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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A Lenda de Otá Eté

Este conto foi feito com a intenção de levar o leitor a fazer uma análise sobre a nossa própria civilização e seu comportamento, fazendo uma analogia com uma pequena ilha no Oceano Pacífico.

A Lenda de Otá Eté
Por Walder Antonio Teixeira



Capítulo I – O Grande Tambor

Otá Eté é uma pequena ilha no Oceano Pacífico, distante de tudo e fora de todas as rotas internacionais de navios e aviões. A população que nela vive divide-se em três grupos distintos: Os Otá Etés do norte, os Otá Etés do sul e os Otá Etés do leste. No oeste existe apenas uma cadeia de montanhas onde não vive ninguém.
O povo de Otá Eté descende dos polinésios que chegaram com seus barcos a centenas de anos atrás. No entanto, os Otá Etés de hoje não se lembram disto.
Em Otá Eté existe um sistema de governo bastante interessante: Os sacerdotes dizem que não se envolvem com política, os caciques dizem que não se envolvem com religião, os donos de redes de pesca (principal atividade econômica da ilha) dizem que não se envolvem nem com política e nem com religião. Porém em todas as decisões importantes os três grupos se reúnem secretamente.
Tudo corria bem na vida de Otá Eté, até que um dia alguns aldeões do norte avistaram um grande barco ao longe. Tal fato teve grande repercussão em Otá Eté, uma torrente de fofocas se espalhou pela ilha. Não tardou muito para que os três grupos que sustentam o poder se reunissem para discutir o assunto. Então, nas montanhas em uma tranqüila madrugada começa a reunião do G3:
- Precisamos dar um fim nessas fofocas. Não podemos deixar isso continuar! – Comenta Otá Oram o sumo sacerdote.
- Otá Oram tem razão! Todos sabem que não existe vida fora de Otá Eté. – Fala Otá Tim, o principal cacique de Otá Eté do norte.
Depois de muito pensar, o esperto Otá Pam, líder do conselho dos donos de redes de pesca resolve dar uma sugestão:
– Podemos dizer que foi um projeto militar! Uma tora que mandamos os nossos guerreiros soltarem no mar. E tudo voltará ao normal.
Otá Oram, ainda preocupado fala:
- Mesmo assim, agora surgiu a dúvida, muitos estão perguntando para os sacerdotes se a vida realmente começou em Otá Eté, ou se existe vida fora de Otá Eté. Temos que fazer algo para que não haja dúvidas, senão nossas instituições estarão ameaçadas. O povo não vai mais acreditar nos sacerdotes, e depois irão questionar o poder militar dos caciques e talvez até não mais utilizar as redes de pesca e irão aprender a fazer suas próprias redes.
Otá Pam dá um pulo do banco onde estava sentado:
Não! Isso nunca! Precisamos realmente fazer algo para acalmar a população.
Otá Tim intervém:
- Não existe vida além, senão onde estariam eles? Onde estariam todos? Porque não vem aqui? – continua Otá Tim. - Se existisse vida fora de Otá Eté nossa avançada tecnologia de comunicação já teria detectado.
- Do que você está falando? – Pergunta Otá Oram.
- Nossos guerreiros desenvolveram a tecnologia de comunicação por tambor. Podemos divulgar este grande feito para a população.
- Sim, mas o que tem isso a ver com o nosso problema?
- É simples – continua Otá Tim - Como nunca ouvimos tambores distantes, logo isso prova que não há vida inteligente fora de Otá Eté.
Otá Oram ergue a sobrancelha esquerda, enquanto está pensando. Depois de um longo silêncio dá a sua opinião:
- Isto não basta! Muitos dirão que é porque não mandamos nenhuma mensagem, por isto não recebemos resposta.
Otá Pam, que em tudo procura uma forma de tirar proveito, vê uma grande oportunidade nesta situação:
- Então porque não construímos um grande tambor para falarmos com as outras civilizações que não existem e acalmar o povo. Com o tempo verão que não teremos nenhuma resposta e retornarão a sua vida cotidiana.
- E se houver resposta? – Pergunta Otá Tim.
Otá Oram grita raivosamente:
- Isto é heresia! Tome cuidado com o que fala! Muitos já morreram por dizerem menos que isto.
Otá Pam, responde:
- Calma! Conhecemos o grande mar. O alcance do grande tambor será limitado, nós o colocaremos entre duas montanhas. E todos que quiserem ver o grande tambor funcionar terão acesso ao espetáculo. Vocês concordam?
Todos acenam a cabeça afirmativamente. Otá Pam continua:
- Então levarei amanhã mesmo meus trabalhadores para as montanhas para confeccionar o grande tambor, e isso só custará dez barris de óleo de peixe.
Ótimo! – Completa Otá Oram – Pediremos contribuições ao povo, àqueles que não quiserem contribuir sofrerão as conseqüências. Dos dez barris de óleo vou querer dois.
Otá Tim se levanta:
- Eu vou querer três!
Otá Pam percebe uma nova oportunidade de ter mais lucro com a situação:
- Então o grande tambor custará duas vezes dez barris!
Todos silenciam, e com o seu silêncio dão a sua aprovação para o projeto de Otá Pam, mesmo sabendo que os vinte barris de óleo de peixe causarão um grande sacrifício ao povo.
Assim, todo décimo dia depois da lua cheia começa a cerimônia do grande tambor. Primeiro um sacerdote abençoa o tambor e agradece ao grande deus pai Otá É, e em seguida dez cocos são lançados de uma altura de dez coqueiros, em cima do tambor. Depois dos dez estrondos todos os presentes fazem dez chokans de tempo em silêncio para esperar uma resposta de outras civilizações. E, como sempre, nada acontece.
Em seguida todos os Otá Etéenses voltam aos seus afazeres, com a certeza de que nada mais existe além de Otá Eté. E a vida na ilha continua como sempre foi: muito boa, mas boa apenas para os poderosos.

Continua....




Capítulo II – O Visitante

Em Otá Eté usa-se o sistema de numeração decimal, onde o maior número possível é dez vezes dez. Tudo que passa além desse número é considerado infinito ou então não existente. Esse sistema é muito vantajoso do ponto de vista econômico, pois os grandes proprietários podem tomar todos os animais que passarem de cem do rebanho pessoal de seus empregados, sem que eles percebam.
A principal atividade econômica é a pesca que é feita com o uso de redes. No entanto, os Otá Etenses não sabem fazer redes. Essa tecnologia é propriedade dos donos das redes de pesca. Eles as alugam para os Otá Etenses do sul. O material, do qual as redes são feitas, só existe no norte. Outros tipos de materiais, que poderiam ser usados para confeccionar redes e que existem em outros lugares além das terras do norte, são proibidos. Dizem que é para ter um padrão de qualidade, outros alegam que esta é vontade de seu deus. Para cada dez peixes pescados, nove são para o aluguel das redes sobrando apenas um para o pescador. Em épocas de poucos peixes o pescador tem de trabalhar o dia inteiro e parte da noite para poder comer. Em épocas de abundancia ele só tem direito a dez peixes, pois o que passar de cem não existe e é do proprietário, e os outros noventa fazem parte do aluguel da rede.
Um pescador chamado Otá Perec estava trabalhando com sua rede na companhia de sua filha Boraca. Quando aconteceu algo inesperado.
Aqui cabe uma explicação: As mulheres não têm o prefixo Otá em seus nomes porque o deus pai Otá É, é um deus pai e não um deus mãe, logo os homens são a imagem e semelhança de Otá É e as mulheres não. Então pode-se concluir que as mulheres não são filhas de Otá É e foram criadas para servir os homens (verdadeiros filhos de Otá É). Assim dizem os sacerdotes, assim diz a tradição.
Um náufrago adormecido aparece na praia dentro de um barco inflável. Otá Perec socorre o homem e o coloca deitado na praia. Ele deixa sua filha cuidando do estrangeiro enquanto corre até sua vila para pedir ajuda. O cacique da vila o manda esperar, enquanto dois guerreiros soam os tambores transmitindo uma mensagem.
Depois de algumas horas esperando, o pescador desiste e volta para onde deixou o náufrago. Ao chegar não encontra nada, nem o bote, nem sua filha e nem o estrangeiro. Bem perto dali ele vê dois guerreiros de tanga preta apagando possíveis marcas nas areias.
- Vocês viram o estrangeiro?
- Não sabemos do que você está falando!
- Mas e o barco?
- Que barco? Isso não existe!
- O barco do estrangeiro?
- Olha! Nós recomendamos não falar sobre isso. Você quer ser considerado um louco? Sabe o que acontece com os loucos?
- Eu tenho certeza do que vi! E minha filha onde está?
- É, ele ficou louco mesmo. Vamos embora daqui!
Quando o pescador voltou para a sua vila e contou o que aconteceu, todos riram dele. E todos o chamaram de louco.
Daquele dia em diante ele não conseguiu mais redes para alugar. Nem conseguiu trabalhar em uma fabrica de óleo de peixe, e as pessoas não falavam mais com ele. Sua mulher, com vergonha, foi embora para outra vila e casou-se com outro pescador.
Sem escolha Otá Perec foi embora para o oeste da ilha. Lá ele aprendeu a colher e comer frutas dos pequenos arbustos que existiam nas montanhas. Lá de cima ele podia observar a vida nos vilarejos. Ele podia ver as pessoas trabalhando o dia todo para poder comer e às vezes não conseguir. Podia ver o sofrimento das mulheres, as crianças trabalhando desde pequenas em um ritmo louco. As pessoas morando em espaços pequenos e apertados, as doenças, as humilhações e tudo mais.
Ele, então, comparou sua vida com as deles. Ele não pescava, só colhia as frutas e comia. Não trabalhava para os outros, pois não precisava. Para dormir a natureza lhe deu várias cavernas para escolher, de vários tamanhos. As aves lhe ofereciam as penas para confeccionar tangas. Em seus ninhos ele podia recolher um ou outro ovo para comer sem alterar o equilíbrio do ninho. Tinha água potável melhor que a água que os Otá Etés do norte possuíam. Tinha tempo para criar coisas novas: inventou um tipo de flauta, criou vasos de cerâmica secados com o sol para guardar água, enfim tinha tempo para usar a criatividade.
Otá Perec também podia ver os grandes navios passando ao longe, e pensava se não era por esse motivo que os religiosos proibiam o povo de subir as montanhas. Eles diziam que entre as montanhas do oeste vivia Urukubaca, o demônio alado, uma criatura mitológica criada pelos sacerdotes para amedrontar os devotos de Otá É. Diziam também que as pessoas más que se recusam trabalhar e se recusam a pagar os tributos, quando morrem vão para as montanhas do norte onde sua alma será atormentada eternamente pelo demônio alado.
Mas voltando na noite do dia em o nosso pescador foi considerado louco. Dentro de uma caverna podia-se ouvir a seguinte conversa:
- Agora, nós vamos dissecá-lo!
- Mas por quê?
- Ora, precisamos saber o que tem dentro! Se ele é igual a nós ou não.
- E este barco esquisito com este material que tem ar dentro?
- Coloque lá embaixo com os outros, e nunca mais use essa palavra.
- Que palavra?
- Barco! Isso não existe!
- Mas nós já sabemos fazer um barco.
- Eu sei, mas por enquanto não sabemos como o fazer ir para o lado que a gente quer.
- Talvez essas pás que estavam dentro dele tenham algo a ver com isso.
- Talvez, mas precisamos estudar mais.
E assim mais uma vez a vida em Otá Eté continua inalterada. Exceto para um pescador isolado em uma montanha.




Capítulo III – O Fim de Otá Eté

Já era madrugada e a reunião dos poderosos de Otá Eté continuava:
- Esses videntes não podem estar certos. Se eles não são sacerdotes e não fazem parte dos lideres de nossa igreja eles não devem ser levados a serio.
- Eu sei! Mas se houver, mesmo que seja pequena, a possibilidade de eles estarem certos, teremos de nos preparar.
- Nós já nos preparamos. Construímos o grande buraco para nos escondermos e nos protegermos no caso de uma tragédia. Se Otá Eté realmente acabar com uma grande onda, como eles dizem, estaremos preparados.
- Mas e o resto da população?
- Eles são dispensáveis.
- Mas quando sairmos do grande buraco, o que vamos fazer? Quem irá trabalhar?
- Nós mesmos teremos que trabalhar!
- Nunca! Isso nunca! Não aceito! Deve haver outra forma.
Alguns começam a gritar, outros iniciam conversas paralelas e outros começam a discutir.
Otá Oram o sumo sacerdote intervém:
- Calma! Peço calma a todos!
Todos fazem silencio esperando Otá Oram completar seu discurso:
- Mesmo quando acontecem tragédias sempre sobram sobreviventes. Essa ralé é uma praga que apesar de tudo insistem em sobreviver. Os que restarem voltarão a trabalhar.
- E se eles não quiserem?
- É por isso que estamos armazenando, além de comida, lanças, arcos e flechas no grande buraco. Nosso poder será restabelecido com a força das armas se for preciso. O importante neste momento é não alarmar a população com essas mentiras de que Otá Eté irá acabar.

Enquanto isso, em um porta-aviões não muito longe dali um homem entra apressado em uma sala:
- Almirante, almirante...
- O que é Major? Fale logo!
- Senhor, um tsunami está indo na direção sul.
- Não tem importância. Não existe nada lá.
- Existe sim! Há uma pequena ilha habitada.
- Ah sim, agora me lembro. Tentamos entrar em contato com eles três vezes desde que foi descoberta, mas seus líderes se recusaram a entrar com contato conosco. Receberam-nos com flechas.
- Senhor, mas o que vamos fazer senhor?
- É um dever humanitário. Mandaremos dois helicópteros para resgate. Mais do que isso não podemos fazer. Nosso navio não chegará a tempo. Mas eu creio que ao verem as ondas, eles deverão ir para as montanhas. É o que todo mundo faria.
Quando o tsunami chegou a Otá Eté, ele pegou a todos de surpresa. Os que viram as ondas não tiveram coragem de subir as montanhas do mal. Os que viram os helicópteros acharam que era Urukubaca o demônio alado e fugiram com mais medo dele do que das ondas. A elite de Otá Eté escondeu dentro do grande buraco, mas os cientistas de Otá Eté esqueceram de dizer a eles que as águas do tsunami também entram em buracos.
Um dos helicópteros resolveu dar uma última volta na ilha para filmar a ação do tsunami:
- Olhe! Ali em baixo no topo daquela montanha.
- Sim, o que é aquilo?
- Um sobrevivente, aliás, o único. Ele está acenando para nós.
- Ok! Vamos resgatá-lo. Informe pelo rádio que só houve um sobrevivente.
Muitos anos se passaram. Hoje Otá Perec possui um barco e pesca no litoral de um país sul americano. No final das tardes de domingo na praia, ele costuma sentar com seus netos para contar estórias sobre uma ilha no pacifico, todos ouvem, mas ninguém acredita nele. Acham que é estória de pescador.

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